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Rico Vasconcelos

Ninguém é obrigado a revelar sua sorologia de HIV

Rico Vasconcelos

13/12/2019 04h00

Crédito: iStock

Essa semana atendi a um paciente novo no consultório que estava bravo pois, depois de sair com um rapaz que havia conhecido num app de encontros, foi avisado por uma amiga em comum dos dois que o cara havia se infectado por HIV alguns anos atrás. O motivo da revolta era que essa informação não havia sido revelada no momento do date, mesmo que não tivessem tido relações sexuais desprotegidas.

De fato, não é fácil viver com HIV no Brasil na atualidade. E a maior dificuldade não vem da doença e nem mesmo do seu tratamento, como por exemplo por seus sintomas ou por efeitos colaterais das medicações, mas da sorofobia que existe em quase todos os ambientes da sociedade.

Sorofobia foi o termo escolhido para denominar a discriminação sofrida pelas pessoas que vivem com HIV por conta desse diagnóstico. Ela se faz presente de inúmeras maneiras, tanto escancarada, como nas piadas de mau gosto ou em uma demissão sem um motivo aparente, quanto de modo mais velado, como em um simples olhar de julgamento e reprovação.

Muitas vezes até as palavras que, para alguns podem parecer inofensivas, podem para outros realmente incomodar. Como no caso de um médico que fala para seu paciente "Parabéns, os seus exames estão quase iguais aos de uma pessoa normal!", fazendo questão de esquecer que pessoas que vivem com HIV são normais.

Por causa da sorofobia existente no mundo, as pessoas que vivem com HIV, em geral, são criteriosas ao escolher para quem vão revelar seu diagnóstico. E eu acho que elas estão certas em fazer isso.

O diagnóstico da infecção por HIV é uma intimidade da vida dessas pessoas e, normalmente, contamos nossas intimidades apenas para aqueles que merecem. Podemos ser realmente muito próximos de alguém, mas escolhermos não lhe contar todas as nossas intimidades. E não há nada de errado nisso. É um direito que todos temos.

Ainda mais se não existir risco de transmissão do vírus, como no caso das pessoas que estão em tratamento antirretroviral com a carga viral indetectável. Ou então, quando a sua parceria estiver em PrEP, ou ainda se o casal simplesmente usar a camisinha nas relações sexuais.

Mas ainda assim, pra boa parte da população desinformada e preconceituosa, a sorofobia, presente na forma de medo irracional dessa infecção, é motivo suficiente para se eliminar o direito fundamental à privacidade das pessoas que vivem com HIV.

Não temos no Brasil nenhuma legislação, como existe em alguns outros países, que obrigue uma pessoa a informar o seu status sorológico para suas parcerias sexuais. Diferente disso, de acordo com a Lei 12.984 de 2014, discriminar alguém por viver com HIV ou mesmo divulgar essa informação "com intuito de lhe ofender a dignidade" é crime com pena de 1 a 4 anos de prisão.

Assim, o paciente que me procurou no consultório deveria ter sim ficado bravo, mas com a amiga que revelou uma intimidade do rapaz sem sua autorização.

Não podemos nos esquecer que, entre adultos, a prevenção da transmissão das infecções sexualmente transmissíveis é uma responsabilidade compartilhada. Por todos que têm vida sexual ativa, e não só de quem é diagnosticado com uma delas. Transferir essa responsabilidade na busca de culpados, utilizando como critério a sorofobia, simplesmente não funciona na redução da incidência de nada e ainda pode ter o efeito oposto por aumentar a discriminação.

Portanto, cuide da sua saúde e prevenção combinada independente do que sabe sobre suas parcerias sexuais. E se um dia alguém lhe revelar que vive com HIV, agradeça a confiança dada e cuide dessa intimidade como se fosse sua.

Sobre o autor

Médico Infectologista formado pela Faculdade de Medicina da USP, Rico Vasconcelos trabalha e estuda, desde 2007, sobre tratamento e prevenção do HIV e outras ISTs. É atualmente coordenador do SEAP HIV, o ambulatório especializado em HIV do Hospital das Clínicas da FMUSP, e vem participando de importantes estudos brasileiros de PrEP, como o iPrEX, Projeto PrEP Brasil, HPTN083 (PrEP injetável) e na implementação da PrEP no SUS. Está terminando seu doutorado na FMUSP e participa no processo de formação acadêmica de alunos de graduação e médicos residentes no Hospital das Clínicas. Também atua na difusão de informações dentro da temática de HIV e ISTs no Brasil, desenvolvendo atividades com ONGs, portais de comunicação, agências de notícias, seminários de educação comunitária e onde mais existir alguém que tenha vida sexual ativa e possua interesse em discutir, sem paranoias, como torná-la mais saudável.

Sobre o blog

Com uma abordagem moderna e isenta de moralismo sobre HIV e ISTs, dois assuntos que tradicionalmente são soterrados por tabus e preconceitos, Rico Vasconcelos pretende discutir aqui, de maneira leve e acessível, o que há de mais atual e embasado cientificamente circulando pelo mundo. Afinal, saber o que realmente importa sobre esse tema é o que torna uma pessoa capaz de gerenciar sua própria vulnerabilidade ao longo da vida sexual. Podendo assim encontrar as melhores maneiras para manter qualidade no sexo, e minimizar os prejuízos físicos e psicológicos associados ao HIV e ISTs.