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Rico Vasconcelos

Retrospectiva do HIV: para tentar acertar mais e errar menos em 2020

Rico Vasconcelos

27/12/2019 04h00

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Mais um ano chega ao fim. E, com esse, já são 38 desde que reconhecemos que havia uma doença nova se espalhando pelo planeta de forma epidêmica. Nesse período, a história da epidemia de HIV/Aids no mundo já teve muitos momentos bons e ruins. Tê-los todos claros e vivos na memória é uma boa forma de não perdermos o rumo certo para se chegar ao controle dessa doença. Assim, me proponho aqui a lembrar alguns dos fatos marcantes, bons e ruins, sobre esse tema, ocorridos no ano de 2019, para que possamos tentar acertar mais e errar menos em 2020. Bom ano novo a todos!

  1. Em janeiro, logo após a posse do governo federal eleito, a diretora do Programa de HIV/Aids do Ministério da Saúde, que vinha fazendo uma gestão eficiente e elogiada tanto por especialistas da área quanto pela sociedade civil, foi exonerada do seu cargo. O motivo alegado foi a autorização, no ano anterior, de uma cartilha de promoção de saúde para homens trans.
  1. Em fevereiro, é iniciado o programa piloto de distribuição gratuita de autotestes de HIV em 14 cidades brasileiras, dando continuidade a uma série de estudos brasileiros realizados nos anos anteriores, utilizando a modalidade de testagem. Estima-se que no Brasil tenhamos mais de 100 mil pessoas vivendo com HIV que ainda não sabem do seu diagnóstico. O autoteste para HIV é uma ferramenta confiável e fácil de usar, recomendada pela Organização Mundial da Saúde, que visa a ampliação da testagem em populações que não estão acessando as modalidades tradicionais de testagem.
  1. Em março, num congresso nos Estados Unidos, foi apresentado o segundo caso da história de cura de HIV. Assim como no primeiro caso, o resultado foi obtido após o transplante de medula óssea em um indivíduo que vivia com HIV, que se encontrava em tratamento antirretroviral adequado, e que desenvolveu um câncer hematológico. Após o transplante, tanto o câncer quanto o HIV haviam desaparecido. O caso é mais um importante passo na compreensão das etapas necessárias para que a cura do HIV se torne um procedimento seguro e aplicável em larga escala.
  1. Em abril, nos Estados Unidos, a agência reguladora de medicamentos aprovou o uso de um esquema antirretroviral simplificado, com apenas duas drogas, para o tratamento da infecção por HIV. O fato é uma revolução na história do tratamento desse vírus e representa uma melhora significativa na qualidade de vida e na toxicidade resultante do uso em longo prazo de antirretrovirais.
  1. Em maio, o Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis, HIV/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, deixa de existir da forma como vinha funcionando desde a sua criação, em 1986. Depois de uma reestruturação, ele perde o "HIV" no seu nome e passa a ser apenas uma coordenadoria, dividindo a pasta com outras doenças transmissíveis de enfrentamento completamente diferente, como a hanseníase. A medida preocupa especialistas da área e a sociedade civil organizada, pois é vista como uma perda e como mais uma ameaça de desmonte da resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids.
  1. Em junho, o Supremo Tribunal Federal decide que a homo e transfobia devem ser consideradas crime, equiparado ao de racismo. A medida é um importante passo no controle da epidemia de HIV/Aids, uma vez que funciona como alavanca para redução da exclusão social a que as vítimas desses crimes são submetidas. Inclusão social e garantia dos direitos básicos de um cidadão, como saúde, segurança e autonomia, são fundamentais para a diminuição dos desfechos negativos associados à infecção por HIV.
  1. Em julho, contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde e de estudos científicos recentes, o Ministério da Saúde encerra as atividades dos seus canais em mídias sociais específicos para comunicação sobre prevenção, diagnóstico e tratamento de HIV e outras ISTs, perdendo boa parte do envolvimento que vinha tentando conseguir com a comunidade brasileira mais jovem, parcela da população que vem apresentando crescimento nos casos de HIV na última década.
  1. Em agosto, a Organização Mundial da Saúde lança um manual reconhecendo a PrEP Sob Demanda como estratégia eficaz e segura de prevenção do HIV. A nova estratégia nada mais é que o uso dos comprimidos da PrEP em uma nova posologia, apenas antes e depois do sexo, recomendada para homens gays e bissexuais que tenham frequência das relações sexuais mais baixa. A PrEP Sob Demanda é mais uma forma de prevenção dentro do cardápio da Prevenção Combinada, que pode funcionar bem para alguns contextos de vida sexual.
  1. Em setembro, estreou o documentário Cartas para Além dos Muros, do diretor André Canto, que conta a história da epidemia brasileira de HIV/Aids. A obra é um verdadeiro marco no Brasil que já nasce com a proposta de promover o debate aberto e sem preconceitos sobre o assunto, disseminando as formas existentes para eliminarmos o estigma, os novos casos da infecção e as mortes por Aids no Brasil. Atualmente ele já está disponível em todas as plataformas digitais de exibição, como Netflix, Now, Vivo Play e Oi Play.
  1. Na Califórnia, nos Estados Unidos, em outubro foi aprovada a lei que permite a venda pelas farmácias dos medicamentos da PrEP e da PEP contra o HIV sem prescrição médica. A medida é uma revolução, pois derruba barreiras e facilita o acesso às estratégias de prevenção pelas pessoas que se encontram mais vulneráveis a essa infecção. No Brasil, ainda enfrentamos uma expansão lenta do acesso à PrEP pelo sistema público de saúde. E, pelo sistema privado, ainda custando em torno de R$ 300 por mês para cada usuário.
  1. Em novembro, a Sociedade Europeia de HIV passou a recomendar que casais heterossexuais sorodiferentes que desejam ter filhos, podem tentar engravidar da maneira tradicional, desde que a pessoa que vive com o vírus esteja em tratamento adequado. Com a decisão, a importante entidade reconhece definitivamente que uma pessoa indetectável é de fato alguém que não apresenta nenhum risco de transmitir seu vírus por via sexual, mesmo que não use preservativo nas relações sexuais.
  1. Em dezembro, a cidade de São Paulo divulga dois excelentes resultados no controle da epidemia de HIV. Primeiro, recebe do Ministério da Saúde a certificação de eliminação da transmissão materno-infantil do vírus. Depois, publica seu boletim epidemiológico de HIV mostrando queda de quase 20% no número de novos casos da infecção em apenas um ano. Os dois resultados são fruto de intenso trabalho dos gestores e das equipes de saúde da cidade, e da formulação das políticas públicas de saúde para o HIV/Aids baseadas em conhecimento científico e não em opiniões pessoais ou preconceitos.

Sobre o autor

Médico Infectologista formado pela Faculdade de Medicina da USP, Rico Vasconcelos trabalha e estuda, desde 2007, sobre tratamento e prevenção do HIV e outras ISTs. É atualmente coordenador do SEAP HIV, o ambulatório especializado em HIV do Hospital das Clínicas da FMUSP, e vem participando de importantes estudos brasileiros de PrEP, como o iPrEX, Projeto PrEP Brasil, HPTN083 (PrEP injetável) e na implementação da PrEP no SUS. Está terminando seu doutorado na FMUSP e participa no processo de formação acadêmica de alunos de graduação e médicos residentes no Hospital das Clínicas. Também atua na difusão de informações dentro da temática de HIV e ISTs no Brasil, desenvolvendo atividades com ONGs, portais de comunicação, agências de notícias, seminários de educação comunitária e onde mais existir alguém que tenha vida sexual ativa e possua interesse em discutir, sem paranoias, como torná-la mais saudável.

Sobre o blog

Com uma abordagem moderna e isenta de moralismo sobre HIV e ISTs, dois assuntos que tradicionalmente são soterrados por tabus e preconceitos, Rico Vasconcelos pretende discutir aqui, de maneira leve e acessível, o que há de mais atual e embasado cientificamente circulando pelo mundo. Afinal, saber o que realmente importa sobre esse tema é o que torna uma pessoa capaz de gerenciar sua própria vulnerabilidade ao longo da vida sexual. Podendo assim encontrar as melhores maneiras para manter qualidade no sexo, e minimizar os prejuízos físicos e psicológicos associados ao HIV e ISTs.