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Rico Vasconcelos

HIV e coronavírus, a história que repete os mesmos erros

Rico Vasconcelos

27/03/2020 04h00

iStock

Entre os meses de outubro de 1980 e maio de 1981, cinco rapazes, que até então eram saudáveis, procuraram atendimento em hospitais na cidade de Los Angeles, nos Estados Unidos, com sintomas de tosse e falta de ar. Todos os cinco foram diagnosticados com uma pneumonia rara, causada por um microrganismo hoje conhecido como Pneumocystis jiroveci, que só era encontrado em pessoas com doenças que deixavam a imunidade debilitada.

Até julho de 1981, mais 26 novos casos tinham se somado aos iniciais, fazendo com que o sistema de vigilância epidemiológica suspeitasse que uma nova doença estava circulando entre a população. Depois de algum tempo de investigação, foi descoberto que aquela doença que destruía a imunidade de pessoas saudáveis era causada por um vírus, nomeado como Vírus da Imunodeficiência Humana, mais conhecido como HIV.

Desde então, pesquisadores, governantes e sociedade civil passaram a se dedicar a compreender as características da disseminação desse vírus e a desenvolver formas de controle dos novos casos e das mortes decorrentes dessa infecção.

Esse empenho, no entanto, não foi igual entre os diferentes governantes de todo o mundo. Mesmo que rapidamente o HIV já tivesse registro de transmissão comunitária em todos os continentes, o que caracterizava uma pandemia, alguns chefes de estado insistiram por anos em menosprezar ou mesmo ignorar a importantíssima questão de saúde pública que estava posta.

Um bom exemplo dessa omissão foi a do então presidente republicano dos Estados Unidos, Ronald Reagan. Por cinco longos anos, mesmo que muitas pessoas já estivessem morrendo de Aids no seu país, o presidente americano simplesmente não falou nada sobre a nova pandemia que se alastrava. Um dos motivos para o silêncio era o fato das mortes estarem ocorrendo quase todas entre homens gays, grupo desprezado pelo governo do presidente conservador.

A primeira vez que Reagan pronunciou "HIV" em público foi em uma coletiva de imprensa, em setembro de 1985, para declarar que compreendia os pais que se mobilizavam para impedir a entrada de crianças vivendo com HIV na escola dos seus filhos. Isso, depois de o Centro de Controle de Doenças norte-americano já ter emitido um parecer considerando inexistente o risco de transmissão do vírus no tipo de contato social existente entre crianças na escola.

Outro exemplo foi o presidente Thabo Mbeki, da África do Sul que, na década de 1990, por não acreditar que o HIV poderia causar doença grave, simplesmente ignorou a existência da pandemia em seu país e não disponibilizou o tratamento antirretroviral para as pessoas infectadas.

A atuação do presidente sul-africano é tida hoje como uma das principais causas da disseminação do HIV naquele país, que tem hoje mais de 7 milhões de pessoas infectadas e uma prevalência da infecção na população geral em torno de 18%.

O mundo dá voltas e fatos se repetem

Quando fazemos um paralelo com o momento atual que estamos vivendo, fica claro que o mundo dá voltas e que alguns fatos se repetem de forma praticamente igual.

Temos agora uma nova pandemia de coronavírus em curso. De acordo com o que aprendemos com a passagem desse vírus na China e na Itália, se nada for feito para conter sua disseminação, um número muito grande de pessoas ainda perderá suas vidas em decorrência dessa infecção no resto do mundo. Isso sem falar do colapso nos sistemas de saúde e econômico.

Da mesma forma que com o HIV, apesar de já termos transmissão comunitária do vírus em todos os continentes e de estarmos chegando à marca de 30 mil mortes registradas, quase todas entre idosos, temos também agora chefes de estado menosprezando ou mesmo ignorando o coronavírus.

Na pandemia atual, no entanto, a velocidade da disseminação viral chama mais a atenção dos epidemiologistas. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde, o HIV demorou cerca de 11 anos para infectar meio milhão de pessoas em todo mundo. Já o coronavírus, atingiu essa marca em menos de três meses de pandemia.

É claro que os dois vírus têm vias de transmissão completamente distintas, o que determina a velocidade de crescimento do número de casos. Mas a comparação serve bem para apontar a magnitude do problema de saúde pública que temos pela frente para enfrentar e a urgência nas respostas governamentais para a condução da pandemia.

Não importa se são homens gays, pessoas idosas ou qualquer outro grupo, pandemias deixam vítimas. E faz parte das obrigações das autoridades de saúde pública preservar essas vidas.

Não faça como os presidentes norte-americano e sul-africano. Mostre que você é inteligente e que valoriza o que o conhecimento científico e a história nos ensinam. Não menospreze nem ignore o coronavírus, siga as orientações das autoridades de saúde pública e fique em casa.

Sobre o autor

Médico Infectologista formado pela Faculdade de Medicina da USP, Rico Vasconcelos trabalha e estuda, desde 2007, sobre tratamento e prevenção do HIV e outras ISTs. É atualmente coordenador do SEAP HIV, o ambulatório especializado em HIV do Hospital das Clínicas da FMUSP, e vem participando de importantes estudos brasileiros de PrEP, como o iPrEX, Projeto PrEP Brasil, HPTN083 (PrEP injetável) e na implementação da PrEP no SUS. Está terminando seu doutorado na FMUSP e participa no processo de formação acadêmica de alunos de graduação e médicos residentes no Hospital das Clínicas. Também atua na difusão de informações dentro da temática de HIV e ISTs no Brasil, desenvolvendo atividades com ONGs, portais de comunicação, agências de notícias, seminários de educação comunitária e onde mais existir alguém que tenha vida sexual ativa e possua interesse em discutir, sem paranoias, como torná-la mais saudável.

Sobre o blog

Com uma abordagem moderna e isenta de moralismo sobre HIV e ISTs, dois assuntos que tradicionalmente são soterrados por tabus e preconceitos, Rico Vasconcelos pretende discutir aqui, de maneira leve e acessível, o que há de mais atual e embasado cientificamente circulando pelo mundo. Afinal, saber o que realmente importa sobre esse tema é o que torna uma pessoa capaz de gerenciar sua própria vulnerabilidade ao longo da vida sexual. Podendo assim encontrar as melhores maneiras para manter qualidade no sexo, e minimizar os prejuízos físicos e psicológicos associados ao HIV e ISTs.