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Rico Vasconcelos

Projeto Sífilis Não: ter cura não resolve o problema de uma IST

Rico Vasconcelos

04/05/2018 04h01

Crédito: iStock

O fato de uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST) ter cura disponível não faz com que ela automaticamente deixe de ser um problema de saúde pública.

A sífilis é um bom exemplo disso. Causada por uma bactéria chamada Treponema pallidum, que já transita entre os seres humanos há muitos séculos, e por diversas vezes foi até estampada em páginas de romances e livros de história.

Essa bactéria é muito facilmente transmitida de uma pessoa para outra numa relação sexual, inclusive no sexo oral. Mas também sem dificuldades é possível fazer o diagnóstico dessa infecção, uma vez que dispomos de testes rápidos para sífilis que conseguem nos dar um resultado confiável dentro de apenas 30 minutos. Com o diagnóstico correto feito, também é possível realizar facilmente o tratamento com antibiótico e obter a cura da sífilis. E isso, desde a década de 1940, quando foi inventada a penicilina.

Se tudo na sífilis é fácil, temos então no Brasil e no mundo uma epidemia dessa IST que já está controlada ou no mínimo com seus números em queda, certo? Errado.

Segundo o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, nos últimos cinco anos, o número de novos casos de sífilis transmitidos por via sexual notificados por ano aumentou em mais de 50 vezes. E, somente entre 2015 e 2016, os casos de sífilis em gestantes e de sífilis congênita — situação grave em que o Treponema é transmitido da mãe para o bebê durante a gestação ou parto — aumentaram em 14,7% e 4,7%, respectivamente.

A epidemia de sífilis continua se alastrando por dois motivos. Primeiro, porque a adesão às estratégias de prevenção, como o uso do preservativo ou outro método de barreira, não é alta o suficiente para se obter o seu controle em nível populacional. E em segundo, porque a sequência simples e resolutiva que envolve o "testar – diagnosticar – tratar – curar" é feita em apenas parte dos casos de sífilis, que muitas vezes não apresentam nenhum sintoma, não encerrando assim a cadeia de transmissão da bactéria.

Se todos os brasileiros usassem o preservativo em todas as suas relações sexuais, do início ao fim, inclusive no sexo oral, com todas as suas parcerias ao longo de suas vidas, conseguiríamos zerar os novos casos de sífilis –e de várias outras ISTs também. Essa foi uma utopia em que acreditamos por décadas. Sabemos hoje que a camisinha sozinha é incapaz de controlar a epidemia de uma IST, uma vez que não é para todo mundo que essa proposta parece viável ou aplicável ao seu contexto de vida.

Por outro lado, se todos os brasileiros com vida sexual ativa se testassem periodicamente para sífilis, mesmo estando assintomáticos, e realizassem o tratamento sempre que fosse feito um novo diagnóstico, seria possível zerar o número de pessoas com sífilis ainda não tratadas. E, como consequência disso, despencaria o número de novos casos da doença. Da mesma forma, se todas as mulheres grávidas fossem testadas para sífilis durante a gestação, e tratadas quando positivas, não teríamos mais casos de sífilis congênita.

Essa segunda abordagem, de testar e tratar, é certamente mais factível, e baseado nela o Ministério da Saúde iniciou no final do ano passado um programa de resposta rápida à epidemia de sífilis chamado Projeto Sífilis Não. Ele conta com a parceria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e da Organização Pan-americana de Saúde, e tem orçamento previsto de R$ 200 milhões. O projeto vai garantir os insumos de testagem e antibióticos, e está capacitando agentes multiplicadores que vão disseminar em todo o Brasil as ações necessárias de prevenção, diagnóstico, tratamento e coleta de dados epidemiológicos. Na semana passada foi a vez da região sudeste realizar aqui em São Paulo o seu seminário interfederativo para planejar os próximos passos do projeto.

A cura de uma IST é apenas um dos elementos necessários para seu controle. Mas ela sozinha não serve para nada se não existe uma política bem feita para identificação e tratamento dos casos da doença. Pela primeira vez no Brasil esse assunto está abordado dessa maneira. Siga o Projeto Sífilis Não e faça parte desse movimento. Afinal, a luta é contra as ISTs e não contra o sexo.

Sobre o autor

Médico Infectologista formado pela Faculdade de Medicina da USP, Rico Vasconcelos trabalha e estuda, desde 2007, sobre tratamento e prevenção do HIV e outras ISTs. É atualmente coordenador do SEAP HIV, o ambulatório especializado em HIV do Hospital das Clínicas da FMUSP, e vem participando de importantes estudos brasileiros de PrEP, como o iPrEX, Projeto PrEP Brasil, HPTN083 (PrEP injetável) e na implementação da PrEP no SUS. Está terminando seu doutorado na FMUSP e participa no processo de formação acadêmica de alunos de graduação e médicos residentes no Hospital das Clínicas. Também atua na difusão de informações dentro da temática de HIV e ISTs no Brasil, desenvolvendo atividades com ONGs, portais de comunicação, agências de notícias, seminários de educação comunitária e onde mais existir alguém que tenha vida sexual ativa e possua interesse em discutir, sem paranoias, como torná-la mais saudável.

Sobre o blog

Com uma abordagem moderna e isenta de moralismo sobre HIV e ISTs, dois assuntos que tradicionalmente são soterrados por tabus e preconceitos, Rico Vasconcelos pretende discutir aqui, de maneira leve e acessível, o que há de mais atual e embasado cientificamente circulando pelo mundo. Afinal, saber o que realmente importa sobre esse tema é o que torna uma pessoa capaz de gerenciar sua própria vulnerabilidade ao longo da vida sexual. Podendo assim encontrar as melhores maneiras para manter qualidade no sexo, e minimizar os prejuízos físicos e psicológicos associados ao HIV e ISTs.