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Rico Vasconcelos

A hepatite C e a habilidade brasileira em negociar o preço da sua saúde

Rico Vasconcelos

14/09/2018 04h00

Crédito: iStock

Essa semana duas matérias, uma da Folha de São Paulo e outra do UOL, causaram uma enorme discussão no mundo da saúde pública brasileira. Elas falam sobre o projeto do Ministério da Saúde de passar a comprar a versão genérica e mais barata de um medicamento utilizado em um dos esquemas de tratamento da hepatite C, capaz de curar pacientes que vivem com a doença. Esse projeto faz parte de um plano maior do Ministério, que tem como objetivo a erradicação da hepatite C problema no país até 2030.

O fim de um problema como esse, responsável por milhares de mortes anualmente no Brasil, parece ser uma boa ideia. Mas para atingirmos essa meta, será necessário primeiro identificar, tratar e curar o maior número possível de pessoas com a doença, utilizando para isso um esquema medicamentoso que seja eficaz.

E aí começa o problema. Uma vez que o orçamento destinado à saúde pública não é infinito e o número de indivíduos que precisam ser tratados é enorme, quanto mais alto for o custo desse tratamento, menos pessoas poderão ter acesso ao benefício proposto e mais distantes ficaremos da erradicação.

A negociação dos preços a serem pagos na área da saúde pública faz parte dessa complexa equação e é desenvolvida diariamente por todos os bons gestores de saúde. Esse processo não é uma novidade e nem restrito à hepatite C. Para quem não sabe, o Ministério da Saúde já tem um bem-sucedido histórico de negociações desse tipo.

Em 2007, por exemplo, cerca de 10 anos depois de aprovada a lei que garantia o acesso gratuito ao tratamento da infecção por HIV, havia um antirretroviral bastante caro e "de marca" que era utilizado por mais de 75.000 pessoas no Brasil.

Para que o país cumprisse a lei e as metas de ampliação de acesso ao tratamento do HIV, o Ministério iniciou então a negociação para redução do preço do medicamento patenteado. Por não chegar a um acordo com a indústria farmacêutica e para garantir a saúde da população, o Brasil usou de um dispositivo legal chamado licença compulsória –-conhecida popularmente como quebra da patente – passando inicialmente a comprar a versão genérica e muito mais barata da droga, e depois a produzir seu próprio medicamento.

A patente é um direito concedido pelo estado a alguém para explorar comercialmente e com exclusividade a sua "invenção". Dessa forma o fabricante teria a possibilidade de receber de volta o dinheiro investido para o desenvolvimento de compostos cada vez melhores, como no caso dos medicamentos.

Após concedido, esse direito costuma valer por 20 anos até que outros possam também produzir e comercializar o produto. Mas pode ser suspenso antes disso caso ocorram situações como a evidência de abuso de poder econômico, se for de interesse público ou com o objetivo de proteger a saúde pública.

A licença compulsória de 2007 só foi possível devido ao posicionamento firme do Governo Federal e ao envolvimento da sociedade civil organizada, que defendeu aquilo que era de interesse público.

Além do caso da hepatite C, existem outras áreas em que uma negociação desse tipo cairia muito bem. Um exemplo é a Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PrEP) já oferecida no SUS. A possibilidade da compra de um medicamento tão eficaz quanto, porém com um custo menor para essa estratégia, seria determinante na velocidade da ampliação da PrEP e, consequentemente, no controle da epidemia de HIV no país.

Em todos os casos citados, o objetivo da negociação é sempre a ampliação do acesso às tecnologias de prevenção e tratamento dessas doenças, e a consequente melhoria na qualidade de vida da população.

Tudo isso regulamentado por uma ampla legislação que conduz esses processos, para que nenhuma das partes seja lesada e nem seja comprado um produto que não cumpre suas funções.

Pensando em saúde pública, encontrar o melhor preço para os melhores medicamentos é fundamental para o sucesso populacional das ações tomadas.

Não sabemos ainda qual será o desfecho da negociação da hepatite C, mas se interessar por esse assunto e acompanhar as etapas desses processos é também uma maneira de estar atento à sua própria saúde. Afinal, 2030 já está chegando.

Sobre o autor

Médico Infectologista formado pela Faculdade de Medicina da USP, Rico Vasconcelos trabalha e estuda, desde 2007, sobre tratamento e prevenção do HIV e outras ISTs. É atualmente coordenador do SEAP HIV, o ambulatório especializado em HIV do Hospital das Clínicas da FMUSP, e vem participando de importantes estudos brasileiros de PrEP, como o iPrEX, Projeto PrEP Brasil, HPTN083 (PrEP injetável) e na implementação da PrEP no SUS. Está terminando seu doutorado na FMUSP e participa no processo de formação acadêmica de alunos de graduação e médicos residentes no Hospital das Clínicas. Também atua na difusão de informações dentro da temática de HIV e ISTs no Brasil, desenvolvendo atividades com ONGs, portais de comunicação, agências de notícias, seminários de educação comunitária e onde mais existir alguém que tenha vida sexual ativa e possua interesse em discutir, sem paranoias, como torná-la mais saudável.

Sobre o blog

Com uma abordagem moderna e isenta de moralismo sobre HIV e ISTs, dois assuntos que tradicionalmente são soterrados por tabus e preconceitos, Rico Vasconcelos pretende discutir aqui, de maneira leve e acessível, o que há de mais atual e embasado cientificamente circulando pelo mundo. Afinal, saber o que realmente importa sobre esse tema é o que torna uma pessoa capaz de gerenciar sua própria vulnerabilidade ao longo da vida sexual. Podendo assim encontrar as melhores maneiras para manter qualidade no sexo, e minimizar os prejuízos físicos e psicológicos associados ao HIV e ISTs.