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Rico Vasconcelos

Qual a urgência da cura do HIV?

Rico Vasconcelos

15/03/2019 04h00

Crédito: iStock

Na semana passada o anúncio do segundo caso de cura de infecção por HIV agitou as redes sociais em todo o mundo. Isso costuma acontecer sempre que qualquer notícia que envolva esse assunto é publicada. Proponho aqui uma reflexão importante: qual a urgência atual do desenvolvimento de uma cura para o HIV dentro das prioridades dessa epidemia?

Pra quem não sabe, os dois casos de cura registrados até hoje envolveram um procedimento chamado Transplante de Medula Óssea (TMO), usado para tratamento de um câncer hematológico. O procedimento é realizado como última alternativa para tratamento desse tipo de doença.

O TMO, de maneira bem simplificada, consiste na destruição das células sanguíneas doentes de um indivíduo e posterior infusão nele de uma nova "fábrica" saudável dessas células (medula óssea), doada por uma pessoa compatível. É como se fosse feita a troca de sangue entre duas pessoas. Ele é utilizado somente em último caso por conta dos altos riscos de complicações e até morte durante o procedimento, o que pode ocorrer em 25% dos casos ou mais, dependendo do centro onde é realizado. E quando o TMO dá certo, os pacientes precisam continuar usando medicamentos imunossupressores.

O TMO realizado numa pessoa vivendo com HIV elimina boa parte do que ainda existia de vírus em seu corpo, mas o sucesso dos dois casos reportados dependeu também da presença de uma mutação genética rara, nos doadores da medula óssea, que torna a entrada do vírus em suas células alvo mais difícil. Em resumo, para a cura foi feita a troca do sangue por outro que não pode ser infectado pelo HIV.

Ao saberem do segundo caso de cura, alguns pacientes que acompanho e certamente muitos outros em todo mundo já começaram a pensar se haveria a possibilidade de passarem por um TMO para também se curarem.

Esse pensamento é perfeitamente compreensível. Se hoje já é possível, com o tratamento antirretroviral, fazer com que o HIV não prejudique a saúde de quem vive com o vírus e nem mesmo haja riscos da sua transmissão numa relação sexual ou gestação, o estigma e a sorofobia associados a esse diagnóstico não se resolvem com uma carga viral indetectável. E são eles hoje talvez as maiores causas de problemas para essas pessoas.

No entanto, ninguém por enquanto vai indicar o TMO apenas com o objetivo de cura, sem que haja uma leucemia para ser tratada. Afinal, os mais de 400.000 reais gastos no procedimento, a alta letalidade no processo e, principalmente, a não certeza de que a cura vai ser atingida, ainda inviabilizam a estratégia.

De qualquer maneira, esses casos nos servem de aprendizado e como um passo a mais no caminho do desenvolvimento de uma técnica de cura mais viável e aplicável em larga escala. Até lá, vamos continuar utilizando o que já se mostrou eficaz e custo-efetivo no tratamento do HIV.

É importante, no entanto, entender que, na lista de prioridades do enfrentamento da epidemia de HIV/Aids, existem itens que no momento são tão urgentes quanto a cura. Os dados epidemiológicos nos mostram que o número de novos casos registrados todos os anos continua muito alto, fazendo com que o total de pessoas vivendo com HIV ainda cresça de maneira acelerada.

Sabendo que cada nova pessoa infectada vai precisar da terapia antirretroviral para o resto da sua vida para se manter com saúde, e que o orçamento no mundo destinado para esse tratamento é limitado e não tem aumentado junto com os casos da infecção, em breve, se nada for feito de efetivo para controle dos novos casos, a conta pode não mais fechar.

Estudiosos e ativistas, então, têm alertado para o fato de que a prevenção do HIV deve ser também uma urgência. A descoberta de uma cura para quem vive com HIV será algo infinitamente bom. Algo necessário e cuja busca não deve cessar. Mas, melhor ainda será uma cura que chegue num cenário em que os novos casos já estejam controlados, sem chances inclusive dos curados se reinfectarem. Afinal, só com a cura individual a epidemia de HIV não deixa de existir. A sífilis é o melhor exemplo disso. Mesmo tendo uma cura barata e eficaz disponível desde a década de 1940, estamos batendo recordes de incidência a cada ano.

Uma urgência não anula a outra. Ao contrário, devem andar juntas. E nos dois caminhos todos ganham muito com o combate ao preconceito e discriminação, o que não requer tecnologia nem financiamento. Apenas conhecimento.

Sobre o autor

Médico Infectologista formado pela Faculdade de Medicina da USP, Rico Vasconcelos trabalha e estuda, desde 2007, sobre tratamento e prevenção do HIV e outras ISTs. É atualmente coordenador do SEAP HIV, o ambulatório especializado em HIV do Hospital das Clínicas da FMUSP, e vem participando de importantes estudos brasileiros de PrEP, como o iPrEX, Projeto PrEP Brasil, HPTN083 (PrEP injetável) e na implementação da PrEP no SUS. Está terminando seu doutorado na FMUSP e participa no processo de formação acadêmica de alunos de graduação e médicos residentes no Hospital das Clínicas. Também atua na difusão de informações dentro da temática de HIV e ISTs no Brasil, desenvolvendo atividades com ONGs, portais de comunicação, agências de notícias, seminários de educação comunitária e onde mais existir alguém que tenha vida sexual ativa e possua interesse em discutir, sem paranoias, como torná-la mais saudável.

Sobre o blog

Com uma abordagem moderna e isenta de moralismo sobre HIV e ISTs, dois assuntos que tradicionalmente são soterrados por tabus e preconceitos, Rico Vasconcelos pretende discutir aqui, de maneira leve e acessível, o que há de mais atual e embasado cientificamente circulando pelo mundo. Afinal, saber o que realmente importa sobre esse tema é o que torna uma pessoa capaz de gerenciar sua própria vulnerabilidade ao longo da vida sexual. Podendo assim encontrar as melhores maneiras para manter qualidade no sexo, e minimizar os prejuízos físicos e psicológicos associados ao HIV e ISTs.