Série mostra humanidade e acolhimento nos piores anos da epidemia de HIV
A epidemia de HIV e o seu impacto na humanidade já foram ponto de partida e inspiração para a criação de mais de uma centena de produções artísticas desde o surgimento desse vírus, no início da década de 1980.
Eu poderia aqui fazer uma lista bem longa dessas obras, que inclui livros, peças, musicais, séries, filmes e exposições. Muitas inclusive se tornaram verdadeiros símbolos de uma época e responsáveis pela construção do imaginário popular sobre o conceito do HIV. Mas prefiro falar sobre as que podem transformar o mundo atual.
A maioria das produções com a temática do HIV se dedicou a retratar histórias que se passaram nas duas primeiras décadas da epidemia. Nesse período, não havia ainda disponível o arsenal atual de prevenção e tratamento do HIV. Assim, o diagnóstico dessa infecção era como o prenúncio de uma catástrofe, responsável por fazer com que em poucos anos centenas de milhares de vidas terminassem com finais tristes.
A catástrofe a que me refiro era tanto médica quanto social. Além da Aids, com todo o prejuízo que causava à saúde das pessoas, ainda havia os desdobramentos psicossociais da infecção por HIV, relacionados ao estigma, julgamento e discriminação. Algo que alguns autores chamaram de morte social causada pelo HIV, como resultado da ideia equivocada de que essa infecção acontecia entre pessoas que faziam "coisas erradas", socialmente condenadas.
A catástrofe médica se reduziu significativamente, com a possibilidade hoje de tratamento antirretroviral da infecção, mas a social ainda se perpetua.
Retratar o catastrófico em produções artísticas é um recurso que sempre resulta em sucesso de audiência, mas algumas dessas obras conseguiram se destacar por outros motivos. Nesse sentido, uma série de televisão que estreou em 2018 tem realmente chamado a atenção pela sensibilidade com que trata o tema HIV.
POSE, do canal norte americano FX, conta a história da cena trans e gay nova-iorquina no final da década de 1980, com seus famosos bailes e competições de dança e estilo. Contando com o maior elenco de pessoas trans já visto na TV, a série mostra tanto as dificuldades enfrentadas na época por negros e latinos LGBTs, quanto as soluções encontradas por eles para superarem a marginalização que lhes era imposta.
Uma delas, descrita na série, era a organização de grupos por afinidade com funcionamento semelhante ao de uma família, com mães e filhos. Dentro das chamadas Casas, seus integrantes encontravam o acolhimento e segurança necessários para viver.
A vivência dentro das Casas era determinante no desenvolvimento pessoal para muitos dos seus filhos, promovendo desde o cuidado com a sua própria saúde até a formação profissional.
Com o avançar da série, descobrimos que, no meio de uma epidemia que crescia e dizimava LGBTs de maneira explosiva, havia nesses grupos também acolhimento e humanidade com as pessoas que viviam com HIV, mostrando de maneira exemplar a comunidade assumindo o HIV como parte da vida de todos, e não apenas de quem estava infectado.
Ao preferir colocar o foco no acolhimento ao invés da catástrofe, a série se mostra responsável e se distingue dentro da longa lista de obras que abordam a epidemia de HIV. Outras produções fizeram a mesma escolha, como o longa-metragem francês 120 batimentos por minuto de 2017, que conta a história da ONG Act Up e da trajetória de seus integrantes em Paris exatamente no mesmo final da década de 1980.
Em 2019, o senso comum tende a achar muito mais que o HIV é a catástrofe individual de uma pessoa do que uma responsabilidade de toda a sociedade, perpetuando assim a discriminação e o estigma.
#Ricomendo que assistam tanto a POSE quanto ao 120 batimentos por minuto. Eles nos ensinam que a cura para a morte social sempre existiu e esteve nas nossas mãos. Está no debate franco sobre HIV e no acolhimento de quem vive com ele.
Sem isso, silêncio e discriminação podem matar mais que o próprio vírus.
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