Recusar o aborto legal a alguém é como não oferecer prevenção contra o HIV
O episódio do aborto da menina de 10 anos é um absurdo do início ao fim. Entretanto, se teve uma coisa que me chocou ainda mais nessa história foi a recusa dos médicos capixabas em realizar a interrupção da gestação. A alegação era a de "não terem condições técnicas" no hospital, ainda que houvesse uma equipe disponível, o que me faz pensar que os profissionais da saúde de lá simplesmente não quiseram ajudar a criança.
Sendo procedimento previsto pela constituição brasileira e considerado de urgência, dadas as possíveis complicações existentes com a manutenção de uma gestação até estágios mais avançados, não deveria haver espaço nessa história para opiniões dos profissionais da saúde, gestores, religiosos ou qualquer outra pessoa que não fosse a paciente em questão.
No entanto, infelizmente basta que a discussão se aproxime de um tema que ainda seja um tabu para alguém, que todo o seu conteúdo técnico e racional é esvaziado, dando lugar ao apelo de quem gritar mais alto.
Quem trabalha com HIV certamente já presenciou na sua prática profissional momentos em que violações desse tipo ocorreram. Temos, por exemplo, disponível no SUS e recomendado pelo Ministério da Saúde, o oferecimento gratuito das Profilaxias Pré e Pós Exposição ao HIV (PrEP e PEP, respectivamente) para pessoas vulneráveis a essa infecção.
Trata-se de medicamentos que, quando tomados continuamente (PrEP) ou de forma emergencial depois de uma situação de vulnerabilidade a essa infecção (PEP), são capazes de impedir de forma muito eficaz que um indivíduo se infecte com o HIV.
A PrEP é indicada para quem não é capaz na sua vida sexual de usar o preservativo de forma correta e constante. A PEP, por sua vez, deve ser prescrita em caráter de urgência para pessoas que tiveram uma relação sexual desprotegida, e só funciona se for iniciada até 3 dias depois da exposição.
É uma verdadeira conquista termos no Brasil PrEP e PEP disponíveis no SUS, mas também é revoltante saber que existem profissionais de saúde que se recusam a oferecer essas estratégias de prevenção para pessoas que estão sob risco de se infectarem por HIV simplesmente "porque não concordam".
São frequentes os relatos de casos em que profissionais da saúde usam o atendimento de pessoas que procuram os serviços de saúde com indicação de utilização dessas profilaxias para aplicar nelas um sermão carregado de preconceitos e julgamentos baseados apenas em suas crenças pessoais e não na ciência existente da prevenção do HIV.
Foi assim, por exemplo, o caso de um paciente que acompanho que, ao buscar PEP em um hospital público de São Paulo depois de uma relação sexual sem camisinha, teve que ouvir do profissional de plantão que "na hora de trepar é burro e não pensa, e agora vem aqui encher meu plantão com uma besteira dessas". Quando na verdade penso que a fala deveria ser "você fez certo em buscar a PEP rapidamente, pois assim vai evitar que se infecte com o HIV e tenha que lidar com isso pelo resto da sua vida".
A PrEP e a PEP já estão regulamentadas no SUS desde 2018 e 2010, respectivamente. Mas ainda hoje o acesso a essas estratégias de prevenção pode ser bastante difícil, e uma das principais barreiras é a objeção de profissionais da saúde.
De fato, existe no Código de Ética Médica o dispositivo da Objeção de Consciência, que permite que um médico se recuse a realizar um procedimento com o qual não concorda, desde que o paciente não fique desassistido com essa decisão, que não sejam casos de urgência ou emergência, ou que a recusa não traga danos à saúde do paciente.
Os motivos que levam à recusa de atendimento por um profissional da saúde podem ser vários, mas com frequência as argumentações são de ordem moral ou religiosa. Isso fica claro em um trabalho realizado por pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP e publicado este mês na revista internacional AIDS Research and Human Retroviruses.
No estudo, um questionário foi aplicado a 370 médicos infectologistas brasileiros para avaliar o nível de conhecimento deles sobre a PrEP e quais fatores poderiam influenciar suas atitudes e desejo de prescrever a PrEP para diferentes perfis de pessoas. A análise dos dados mostrou que claramente os médicos que tinham alguma religião tiveram significativamente maior receio de prescrever a estratégia de prevenção para seus pacientes, mesmo que eles tivessem os critérios de vulnerabilidade ao HIV necessários para usar PrEP.
É claro que profissionais de saúde podem ter uma religião e quaisquer opiniões sobre qualquer assunto, mas não podem em hipótese alguma deixar que isso interfira no acolhimento e no atendimento que presta para seus pacientes.
Não podem trocar o conhecimento técnico e científico pela sua própria crença, sobretudo quando se tratam de intervenções de saúde que podem mudar definitivamente a vida das pessoas que atende, como no caso de uma gestação ou da prevenção do HIV.
O acolhimento das demandas de saúde física e mental dos seus pacientes faz parte das atribuições de um profissional da saúde, e a falta dele, seja por discriminação, intolerância ou preconceito, é uma das principais causas da não vinculação de pacientes aos serviços de saúde.
Os profissionais da saúde devem atuar como facilitadores da saúde e não como obstáculos. E é o papel de todos nós cobrar isso deles.
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