O primeiro erro do governo Bolsonaro na luta contra o HIV
Rico Vasconcelos
18/01/2019 04h00
Crédito: iStock
Essa foi uma semana de muitas mudanças em todo o Brasil por conta dos governos recém-empossados. Isso já era esperado, uma vez que novas equipes devem se formar para por em prática os planos do atual governo. Nesse processo, equipes antigas se dissolvem, caso não se enquadrem na nova coreografia vigente.
Entretanto, uma mudança recebida com muita preocupação e tristeza pela luta contra o HIV/Aids no Brasil foi a exoneração da Diretora do Departamento de ISTs, HIV/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, Dra Adele Benzaken.
A gravidade do fato não vem da exoneração em si, mas das entrelinhas dessa história. O motivo dessa exoneração, o aval da diretora para uma cartilha de orientações de saúde integral para homens trans, apavora qualquer pessoa que trabalha com prevenção e tratamento de HIV no Brasil ou no mundo.
Caso se tratasse de uma denúncia de desvio de dinheiro do departamento, da piora nos indicadores da epidemia de HIV no país ou até mesmo do alinhamento político com algum posicionamento divergente ao da chapa eleita, ainda seria compreensível.
Benzaken, em sua gestão, fez despencar as taxas de mortalidade por aids e de transmissão do HIV de mães para filhos, incorporou as mais modernas tecnologias de prevenção e tratamento do vírus ao SUS, e ainda por cima fez o Brasil economizar dinheiro por conseguir manter o departamento dentro do orçamento previsto. Mas a sua demissão ocorreu por ter respeitado um dos princípios previstos pela constituição: o da equidade.
O conceito de equidade, em saúde pública, é aquele que diz que um governo não deve dar uma atenção à saúde idêntica para todos os cidadãos. Mas deve sim oferecer aquilo que cada indivíduo mais necessita. Entendendo os diferentes contextos de vida para identificar as demandas específicas de cada grupo.
Um exemplo simples para você entender o que estou falando seria um programa de planejamento familiar. Faz muito mais sentido, para um gestor de saúde, priorizar nesse programa a população jovem do que a terceira idade, não faz? Mulheres jovens precisam ter acesso a anticoncepcionais. Mulheres idosas, não. Muito menos os homens. Já os homens trans, se beneficiariam e muito de uma cartilha com orientações sobre sua saúde, pois a saúde pública nunca sequer olhou para eles.
Voltando ao HIV, o Brasil tem uma epidemia que historicamente se concentra nas chamadas populações chave, que incluem, entre outros, as pessoas trans e os homens gays e bissexuais. Essa concentração é o resultado da também histórica exclusão social e precária atenção à saúde a que esses indivíduos são submetidos.
Para se ter sucesso no controle da epidemia de HIV no Brasil, esses grupos devem ser priorizados nas políticas públicas de ampliação do acesso à saúde. Esses e todos os demais grupos que são diariamente deixados de lado pela sociedade.
Dra Adele, como uma boa estudiosa do assunto, sabia o que precisava ser feito. E por isso lançou, no final do ano passado, a "Agenda estratégica para ampliação do acesso e cuidado integral das populações-chave em HIV, hepatites virais e outras infecções sexualmente transmissíveis", um plano longo e abrangente para melhorar a saúde desses grupos. Cabe agora saber se o novo governo vai continuar fazendo o que precisa ser feito e colocar a agenda em prática, ou basear as ações do departamento em seus achismos e preconceitos.
A luta contra o HIV/Aids é uma ciência séria que envolve muitas questões essencialmente técnicas. Da mesma forma como no enfrentamento de uma crise econômica esquecer da inflação seria um erro, na luta contra o HIV não se pode ignorar a saúde LGBT.
A história da epidemia de HIV já nos mostrou que quando se tentou sobrepor com uma opinião as questões técnicas, o resultado foi catastrófico.
Dra Adele Benzaken foi exonerada por ter feito o que era certo. Ela priorizou as populações chave nas políticas públicas de saúde. Sem isso veremos imediata piora nos indicadores da epidemia de HIV no Brasil.
Pense no assunto. Conheça as propostas da agenda estratégica, aproveite e participe das atividades do Dia Nacional da Visibilidade Trans (29/jan). E enfim, reflita sobre o motivo da existência dessa data.
Sobre o autor
Médico Infectologista formado pela Faculdade de Medicina da USP, Rico Vasconcelos trabalha e estuda, desde 2007, sobre tratamento e prevenção do HIV e outras ISTs. É atualmente coordenador do SEAP HIV, o ambulatório especializado em HIV do Hospital das Clínicas da FMUSP, e vem participando de importantes estudos brasileiros de PrEP, como o iPrEX, Projeto PrEP Brasil, HPTN083 (PrEP injetável) e na implementação da PrEP no SUS. Está terminando seu doutorado na FMUSP e participa no processo de formação acadêmica de alunos de graduação e médicos residentes no Hospital das Clínicas. Também atua na difusão de informações dentro da temática de HIV e ISTs no Brasil, desenvolvendo atividades com ONGs, portais de comunicação, agências de notícias, seminários de educação comunitária e onde mais existir alguém que tenha vida sexual ativa e possua interesse em discutir, sem paranoias, como torná-la mais saudável.
Sobre o blog
Com uma abordagem moderna e isenta de moralismo sobre HIV e ISTs, dois assuntos que tradicionalmente são soterrados por tabus e preconceitos, Rico Vasconcelos pretende discutir aqui, de maneira leve e acessível, o que há de mais atual e embasado cientificamente circulando pelo mundo. Afinal, saber o que realmente importa sobre esse tema é o que torna uma pessoa capaz de gerenciar sua própria vulnerabilidade ao longo da vida sexual. Podendo assim encontrar as melhores maneiras para manter qualidade no sexo, e minimizar os prejuízos físicos e psicológicos associados ao HIV e ISTs.