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Aprendizados da epidemia de HIV que são úteis para a de coronavírus

Rico Vasconcelos

28/02/2020 04h00

Reuters

Na quarta-feira de cinzas, enquanto os foliões se recuperavam do último dia do Carnaval no Brasil, o resto do mundo recebia com apreensão a notícia de que havia sido confirmado aqui o primeiro caso de infecção pelo novo coronavírus da América Latina.

Antes mesmo do pronunciamento oficial do Ministério da Saúde brasileiro, já circulavam pelos telefones celulares e redes sociais um mar de informações sobre a epidemia que havia chegado. Muitas delas eram realmente úteis mas, outras, completamente sensacionalistas, sem qualquer embasamento científico e apenas promovendo pânico e desinformação.

De fato, a opinião pública costuma reagir mal às notícias de surtos e epidemias de doenças transmissíveis, gostando bastante de criar projeções catastróficas para o futuro. O coronavírus é apenas o vírus da vez que resolveu circular pelo planeta, mas quando lembramos dos anteriores, concluímos que saber como reagir a uma nova epidemia é absolutamente fundamental na determinação dos seus desdobramentos. E a epidemia de HIV é um bom exemplo disso.

Há quase 40 anos, a humanidade conhecia uma nova doença chamada Aids. Entre o final de 1980 e o início de 1981, começaram a aparecer em diferentes hospitais de Los Angeles, nos Estados Unidos, casos graves de infecções raras, que até então só eram vistas em pessoas com problemas na imunidade, como aquelas com cânceres ou submetidas a transplantes de órgãos. Mas o estranho era que dessa vez os casos estavam acontecendo em homens gays que há até pouco tempo eram perfeitamente saudáveis.

Naquela altura, mesmo sem se conhecer o que causava a nova doença e nem como ela era transmitida entre as pessoas, em todos os continentes o número de novos casos já explodia. Foi apenas em 1983 que se descobriu que era um vírus o responsável por aquela epidemia, nomeado como HIV, e que as vias de transmissão possíveis eram por sexo, pelo sangue e de mães para seus bebês.

Enquanto a ciência se dedicou para entender o HIV, sua transmissão e tratamento, junto com o número de casos da doença, se multiplicaram também as lendas e falsas verdades, sempre criadas a partir de equívocos infundados. Muitas dessas mentiras atrapalharam enormemente o trabalho dos médicos e das autoridades de saúde, e algumas delas ecoam até hoje no senso comum sob a forma de estigma e discriminação, não importando se as pesquisas já provaram que são falsas.

Quer exemplos? Em 2020 eu ainda ouço no consultório perguntas absurdas como "Melhor separar os talheres e a roupa de banho?", "Posso usar o mesmo canudo?" ou "Estou preocupada pois eu o beijei na boca". Ou, o que é ainda pior, vejo profissionais da saúde argumentando que HIV é doença de homens gays, portanto heterossexuais não apresentam riscos de se infectarem.

Muito provavelmente, se os primeiros casos de Aids fossem descritos em mulheres heterossexuais na África, as lendas hoje seriam diferentes.

A Sorofobia de hoje, nome dado à discriminação sofrida por viver com HIV, tem origem em informações falsas como essas e muitas outras. Mesmo inventadas no começo da epidemia, causam até hoje segregação e sofrimento, e não ajudam em nada no controle de novos casos da infecção.

Da década de 80 para cá muita coisa mudou, sendo possível hoje identificar uma doença nova, inclusive com o isolamento do vírus, em menos de um mês. Mas, devido à facilidade da comunicação pela internet, as notícias falsas são uma preocupação de um tamanho nunca visto antes.

Estamos prestes a entrar num novo ciclo de pânico generalizado com a chegada do novo coronavírus no Brasil, mesmo que as pesquisas até o momento indiquem que não há necessidade disso. Então, agora é hora de buscar somente informações verdadeiras nas fontes oficiais dos órgãos de vigilância epidemiológica, como nos sites do Ministério da Saúde ou das secretarias de saúde da sua localidade.

Vamos usar a internet em nosso favor. Não compartilhe nada que não tenha uma fonte oficial, ainda que seja uma notícia grave ou importante, ou mesmo que a tenha recebido de um amigo ou parente de confiança. E não faça nada só porque aprendeu em um vídeo que recebeu pelo whatsapp. Aprenda a checar as informações que receber e se mantenha atualizado sobre o que fazer no caso de viagens, sintomas ou contato com casos suspeitos. As orientações mudam de um dia pro outro. E se surgir alguma dúvida, consulte novamente as fontes oficiais.

Todos temos uma responsabilidade nessa epidemia que, além de coronavírus, dissemina desinformação. Já aprendemos com o HIV que somente com pesquisa científica, transparência e educação de qualidade temos chances de superar esse e todos os vírus que surgirem.

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Sobre o autor

Médico Infectologista formado pela Faculdade de Medicina da USP, Rico Vasconcelos trabalha e estuda, desde 2007, sobre tratamento e prevenção do HIV e outras ISTs. É atualmente coordenador do SEAP HIV, o ambulatório especializado em HIV do Hospital das Clínicas da FMUSP, e vem participando de importantes estudos brasileiros de PrEP, como o iPrEX, Projeto PrEP Brasil, HPTN083 (PrEP injetável) e na implementação da PrEP no SUS. Está terminando seu doutorado na FMUSP e participa no processo de formação acadêmica de alunos de graduação e médicos residentes no Hospital das Clínicas. Também atua na difusão de informações dentro da temática de HIV e ISTs no Brasil, desenvolvendo atividades com ONGs, portais de comunicação, agências de notícias, seminários de educação comunitária e onde mais existir alguém que tenha vida sexual ativa e possua interesse em discutir, sem paranoias, como torná-la mais saudável.

Sobre o blog

Com uma abordagem moderna e isenta de moralismo sobre HIV e ISTs, dois assuntos que tradicionalmente são soterrados por tabus e preconceitos, Rico Vasconcelos pretende discutir aqui, de maneira leve e acessível, o que há de mais atual e embasado cientificamente circulando pelo mundo. Afinal, saber o que realmente importa sobre esse tema é o que torna uma pessoa capaz de gerenciar sua própria vulnerabilidade ao longo da vida sexual. Podendo assim encontrar as melhores maneiras para manter qualidade no sexo, e minimizar os prejuízos físicos e psicológicos associados ao HIV e ISTs.