Covid-19 pode aumentar o número de casos e mortes por HIV/Aids
Rico Vasconcelos
15/05/2020 04h00
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Desde o surgimento da pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2), os epidemiologistas têm alertado que os impactos do vírus na saúde pública mundial iriam muito além das mortes causadas diretamente pela covid-19. Desde então, boa parte do empenho das autoridades de saúde teve o objetivo de evitar o colapso do sistema de saúde e os seus catastróficos desdobramentos.
Se os hospitais estão lotados de pacientes internados com covid-19, onde estão as pessoas doentes que normalmente estariam ocupando esses leitos? E os pacientes ambulatoriais, que em geral são esquecidos, como estão durante a pandemia se as suas consultas foram canceladas? Eles podem estar enfrentando dificuldades para obter atendimento médico. Esse é um dos pontos mais importantes da conjuntura atual e que não pode ficar de fora da discussão.
Diversos estudos já tentaram estimar o impacto que a redução na capacidade de atendimento poderia provocar em outros agravos de saúde. Na cidade de São Paulo, por exemplo, em análise recente feita pelo professor Paulo Lotufo da Faculdade de Medicina da USP, em março de 2020 tivemos 743 mortes a mais que a média para o mês entre os anos de 2015 a 2019. Esse excesso de mortalidade se deve não só às mortes por covid-19, mas também ao aumento de mortes por outras causas, que provavelmente não puderam ser atendidas como deveriam pelo sistema de saúde.
A prevenção e o tratamento de HIV/Aids e outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) não ficaram de fora dessa tendência. A Associação Britânica de Saúde Sexual e HIV realizou em abril uma pesquisa eletrônica com 196 profissionais de saúde da área, que demonstrou que, no Reino Unido, com 54% das clínicas fechadas durante a pandemia, a capacidade de atendimento de ISTs, PrEP, PEP, anticoncepção, testagem e tratamento de HIV se reduziu em 80%.
Na última semana, a OMS (Organização Mundial da Saúde) divulgou uma pesquisa que tentou estimar os possíveis impactos de interrupções nos atendimentos dos serviços de HIV/Aids no número de novos casos e de mortes por essa infecção, usando a África Subsaariana como cenário da análise.
Usando modelagens matemáticas, o estudo faz projeções sobre o que poderia acontecer caso houvesse interrupção de diferentes etapas no cuidado do HIV/Aids por períodos de 3 a 6 meses, devido à pandemia de coronavírus. E os resultados são assustadores.
No pior cenário, aquele em que a terapia antirretroviral deixaria de ser disponibilizada para o tratamento das pessoas que vivem com HIV por 6 meses, somente entre 2020 e 2021 haveria na região um acréscimo de mais de 500 mil mortes por causas relacionadas com a Aids.
Só para se ter uma ideia, no ano de 2018 foram registradas ao todo 470 mil mortes por Aids na África Subsaariana.
De acordo com o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, isso seria como retroceder no tempo uma vez que a mortalidade por Aids vem caindo nessa região e desde 2008 não são registradas lá 1 milhão de mortes em um ano.
Interrupções por períodos mais curtos ou mesmo a intermitência na dispensação desses medicamentos poderiam causar aumentos menores na mortalidade por Aids. A má adesão aos comprimidos, no entanto, poderia aumentar de forma significativa o risco de surgimento de mutações de resistência do HIV, o que por sua vez exigiria troca do esquema antirretroviral utilizado e aumento dos custos com ele.
A interrupção de outros serviços prestados no cuidado do HIV/Aids, como a testagem rápida realizada nos centros de saúde ou por meio de autotestes, a distribuição de camisinhas, e os atendimentos de Profilaxias Pré e Pós-Exposição (PrEP e PEP), poderiam causar também aumento de até 25% no número de novas infecções em 1 ano.
Mesmo se considerarmos a diminuição do número de relações sexuais por causa do isolamento social. E a parada no acompanhamento pré-natal de gestantes que vivem com HIV poderia causar um aumento de até 104% no número de casos de transmissão vertical do vírus (da mãe para o filho).
O enfrentamento da epidemia de HIV/Aids tem sido um trabalho difícil para as autoridades de saúde pública e para toda a humanidade. Um trabalho em que os avanços em geral são pequenos e demorados para serem alcançados. Em situações como essas projetadas no estudo da OMS, em que ocorre o desmonte dos serviços de saúde especializados em HIV/Aids, fica evidente também o quão frágil é o controle construído dessa epidemia.
Estudos como esse servem para alertar sobre a importância do esforço para se manter todo o sistema de saúde funcionando. Não só o de HIV/Aids, mas todo aquele que age na prevenção e tratamento de doenças.
O enfrentamento de uma nova pandemia não deve jogar fora as décadas de trabalho empenhadas no controle das epidemias anteriores.
Esse é um Brasil que definitivamente não pode parar.
Sobre o autor
Médico Infectologista formado pela Faculdade de Medicina da USP, Rico Vasconcelos trabalha e estuda, desde 2007, sobre tratamento e prevenção do HIV e outras ISTs. É atualmente coordenador do SEAP HIV, o ambulatório especializado em HIV do Hospital das Clínicas da FMUSP, e vem participando de importantes estudos brasileiros de PrEP, como o iPrEX, Projeto PrEP Brasil, HPTN083 (PrEP injetável) e na implementação da PrEP no SUS. Está terminando seu doutorado na FMUSP e participa no processo de formação acadêmica de alunos de graduação e médicos residentes no Hospital das Clínicas. Também atua na difusão de informações dentro da temática de HIV e ISTs no Brasil, desenvolvendo atividades com ONGs, portais de comunicação, agências de notícias, seminários de educação comunitária e onde mais existir alguém que tenha vida sexual ativa e possua interesse em discutir, sem paranoias, como torná-la mais saudável.
Sobre o blog
Com uma abordagem moderna e isenta de moralismo sobre HIV e ISTs, dois assuntos que tradicionalmente são soterrados por tabus e preconceitos, Rico Vasconcelos pretende discutir aqui, de maneira leve e acessível, o que há de mais atual e embasado cientificamente circulando pelo mundo. Afinal, saber o que realmente importa sobre esse tema é o que torna uma pessoa capaz de gerenciar sua própria vulnerabilidade ao longo da vida sexual. Podendo assim encontrar as melhores maneiras para manter qualidade no sexo, e minimizar os prejuízos físicos e psicológicos associados ao HIV e ISTs.