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Entenda o caso da mulher que pode ter se curado do HIV espontaneamente

Rico Vasconcelos

18/09/2020 04h00

Loreen Willenberg | Crédito: Reprodução

O ano de 2020 está agitado para a pesquisa da cura do HIV. Depois dos resultados da pesquisa brasileira desenvolvida pela Unifesp apresentados em julho na Conferência Mundial de HIV, agora no final de agosto foi publicado um trabalho na revista Nature, uma das mais importantes do mundo científico internacional, que poderá revolucionar os caminhos que podem nos levar até a cura dessa infecção.

Nesse artigo foi apresentado o caso de uma mulher dos Estados Unidos que aparentemente se curou do HIV espontaneamente e os possíveis mecanismos e explicações para isso a partir de uma investigação detalhada feita nela e em um grupo de pessoas que viviam com HIV. As descobertas do estudo são bastante complexas, mas vou tentar explicá-las de forma didática aqui.

Em primeiro lugar, com o conhecimento acumulado até hoje, acreditávamos que depois que uma pessoa se infectasse com o HIV, não havia possibilidade dela se livrar do vírus apenas com as defesas do seu organismo, como fazemos com inúmeras outras infecções. Apenas duas pessoas conseguiram eliminar o HIV do seu corpo até hoje, ambas por meio de um transplante de medula óssea realizado como tratamento para um câncer hematológico.

A maior dificuldade para se chegar à cura do HIV está na persistência do vírus em células espalhadas pelo corpo, chamadas de Reservatório. O vírus consegue permanecer viável lá por décadas, mesmo que o indivíduo esteja sob terapia antirretroviral, mantendo sua carga viral no sangue sempre indetectável.

O HIV consegue "sobreviver" ileso nos reservatórios principalmente por não estar lá presente na forma de uma partícula viral, mas como informação genética necessária para se fabricar uma partícula de HIV. Na forma de um pedaço de DNA, chamado de DNA pró-viral, integrado e escondido em um cromossomo de uma célula do reservatório. Imperceptível ao sistema imune e indestrutível pelo tratamento antirretroviral.

Se um dia esse tratamento for interrompido, as células que estavam apenas carregando o DNA pró-viral do HIV vão começar a produzir novas partículas virais, que vão sair dos reservatórios e reaparecer no sangue, tornando a carga viral novamente detectável.

Dessa forma, o tratamento antirretroviral é excelente para bloquear a replicação do vírus e impedi-lo de causar doença na pessoa que o carrega, mas não foi até hoje capaz de eliminar o HIV do corpo de ninguém. Nos dois casos conhecidos de cura isso só foi possível porque o transplante de medula óssea eliminou todo o reservatório viral que existia no corpo dos pacientes.

Voltando à publicação da Nature, a mulher em questão que pode ter se curado se chama Loreen Willenberg, tem 66 anos de idade, mora na Califórnia e vive com HIV desde 1992. Ela faz parte de um grupo muito especial chamado de Controladores de Elite, que abrange cerca de 0,5% das pessoas que vivem com HIV no mundo.

Os controladores de elite são especiais por terem uma resposta imune própria tão robusta contra o HIV que conseguem permanecer com a carga viral muito baixa ou até indetectável por longos períodos. Uma parte deles pode perder essa capacidade de controlar o HIV ao longo da vida, mas outros não vão ter nunca o vírus detectado no sangue e nem mesmo vão adoecer em decorrência dessa infecção.

Durante toda a sua vida, Loreen nunca precisou iniciar o tratamento antirretroviral devido à eficiência das suas células de defesa no controle do HIV. Até que, a partir do ano passado, os pesquisadores que a acompanhavam anunciaram que não conseguiam mais encontrar o HIV viável no seu corpo, nem mesmo na forma de DNA pró-viral, seja no sangue ou nos reservatórios.

A hipótese dos pesquisadores, depois de procurar em mais de 1,5 bilhão de células, é a de que Loreen, com sua própria imunidade, conseguiu eliminar qualquer resquício de informação genética do seu reservatório capaz de disparar a replicação do HIV. E assim, se curou espontaneamente. No estudo foram avaliados outros 63 controladores de elite, mas todos ainda tinham vírus viáveis em seus reservatórios.

Agora, os pesquisadores procuram entender o que fez o sistema imune de Loreen se comportar de forma diferente, da mesma forma que investigam a possibilidade de um indivíduo se tornar um controlador de elite como ela. No entanto, esse não é um trabalho fácil. Controladores de elite são muito raros e não são todos iguais. São objeto de intensa pesquisa no mundo, e precisam ser melhor compreendidos antes de pensarmos em transformar uma pessoa comum em um deles.

Além disso, o caso de Loreen Willenberg é inédito e recente, por isso precisamos ter cautela nas afirmações sobre sua possível cura e acompanhá-la por mais tempo para entender o que ocorreu de fato. Mas sem dúvida trata-se de um passo a mais em direção à cura do HIV, um fenômeno que a cada dia que passa parece se tornar mais possível.

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Sobre o autor

Médico Infectologista formado pela Faculdade de Medicina da USP, Rico Vasconcelos trabalha e estuda, desde 2007, sobre tratamento e prevenção do HIV e outras ISTs. É atualmente coordenador do SEAP HIV, o ambulatório especializado em HIV do Hospital das Clínicas da FMUSP, e vem participando de importantes estudos brasileiros de PrEP, como o iPrEX, Projeto PrEP Brasil, HPTN083 (PrEP injetável) e na implementação da PrEP no SUS. Está terminando seu doutorado na FMUSP e participa no processo de formação acadêmica de alunos de graduação e médicos residentes no Hospital das Clínicas. Também atua na difusão de informações dentro da temática de HIV e ISTs no Brasil, desenvolvendo atividades com ONGs, portais de comunicação, agências de notícias, seminários de educação comunitária e onde mais existir alguém que tenha vida sexual ativa e possua interesse em discutir, sem paranoias, como torná-la mais saudável.

Sobre o blog

Com uma abordagem moderna e isenta de moralismo sobre HIV e ISTs, dois assuntos que tradicionalmente são soterrados por tabus e preconceitos, Rico Vasconcelos pretende discutir aqui, de maneira leve e acessível, o que há de mais atual e embasado cientificamente circulando pelo mundo. Afinal, saber o que realmente importa sobre esse tema é o que torna uma pessoa capaz de gerenciar sua própria vulnerabilidade ao longo da vida sexual. Podendo assim encontrar as melhores maneiras para manter qualidade no sexo, e minimizar os prejuízos físicos e psicológicos associados ao HIV e ISTs.