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Uma pessoa que vive com HIV pode ser militar?

Rico Vasconcelos

22/02/2019 04h00

Crédito: iStock

Essa semana, nos Estados Unidos, depois de muita polêmica um caso terminou bem. No estado de Virginia, uma juíza emitiu uma sentença proibindo a retirada de dois jovens integrantes da força aérea norte-americana. O motivo da expulsão? O diagnóstico da infecção por HIV.

O diagnóstico havia sido feito em 2017 e hoje ambos estão em acompanhamento médico regular, em tratamento antirretroviral e com suas cargas virais indetectáveis. Encontram-se completamente assintomáticos e haviam sido aprovados nas avaliações de aptidão física, mas mesmo assim foram considerados pelas forças armadas inaptos a continuar servindo à nação. Por causa disso resolveram, junto com um advogado, levar a história para o tribunal.

Os argumentos da corporação para a expulsão dos rapazes se embasaram em fatos tão equivocados quanto a impossibilidade da participação de missões em lugares distantes, como o oriente médio, uma vez que poderiam adoecer caso perdessem seus antirretrovirais. No entender da juíza a decisão foi motivada por discriminação e não tem suporte no conhecimento científico atual.

Esse caso ocorrido nos Estados Unidos serve de ponto de partida para reflexão sobre a maneira que a questão é levada em outros lugares.

No Brasil, a relação do HIV com as forças armadas também não é exatamente harmoniosa.

A exigência de testagem para HIV em qualquer exame admissional ou processo seletivo é considerada proibida, de acordo com a Portaria nº 1.927 do Ministério do Trabalho, de dezembro de 2014. Mas, até o ano passado, ainda se encontrava a obrigatoriedade do resultado negativo para esse exame em editais de concursos públicos para a carreira militar.

Parte dessa restrição se embasa numa lei bem antiga, a 7.670 de 1988, que assegurava o direito à aposentadoria para os civis e à reforma para os militares quando se encontravam doentes com Aids. O benefício existia para dar suporte a esses pacientes no período mais avançado da doença e morte. Se a infecção por HIV era suficiente para afastar um indivíduo das suas atividades trabalhistas, era de se compreender que naquela época também o excluísse de um processo seletivo.

Acontece que de 1988 para cá muita coisa mudou. Temos hoje um tratamento capaz de impedir a progressão da doença causada pelo HIV que é disponibilizado gratuitamente no Sistema Único de Saúde.

Enquanto uma pessoa que vive com HIV se mantiver em terapia antirretroviral jamais adoecerá com Aids, terá saúde e continuará apto a desempenhar qualquer atividade laboral, da mesma forma que um soronegativo. Assim, o HIV sozinho já há anos não é mais motivo para aposentar ninguém no mundo civil.

No caso da carreira militar, o tema por diversas vezes já foi motivo de ações judiciais. Ainda que elas tenham resultados discrepantes, há uma tendência nas sentenças mais recentes de rejeitar a restrição imposta às pessoas que vivem com HIV. Um exemplo disso é a ação da Defensoria Pública do Espírito Santo que teve como resultado em caráter liminar, agora no início de fevereiro de 2019, a retirada da exigência do teste de HIV do edital de um concurso para vagas de bombeiros militares.

Segundo Vinicius Conceição Silva, do Núcleo Especializado de Defesa Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, "a União tem defendido que o militar portador do vírus HIV não tem direito à reforma, especialmente quando assintomático. Logo, exigir o teste de HIV em concursos, ou quando do alistamento, tem caráter discriminatório, uma vez que bastaria o teste de aptidão física para aprovar ou não o candidato".

As leis devem acompanhar o desenvolvimento científico da medicina. Se não o fazem, ficam desatualizadas. Assim, da mesma forma que uma pessoa desinformada, o Estado se torna sorofóbico, provocando desnecessária discriminação e sofrimento.

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Sobre o autor

Médico Infectologista formado pela Faculdade de Medicina da USP, Rico Vasconcelos trabalha e estuda, desde 2007, sobre tratamento e prevenção do HIV e outras ISTs. É atualmente coordenador do SEAP HIV, o ambulatório especializado em HIV do Hospital das Clínicas da FMUSP, e vem participando de importantes estudos brasileiros de PrEP, como o iPrEX, Projeto PrEP Brasil, HPTN083 (PrEP injetável) e na implementação da PrEP no SUS. Está terminando seu doutorado na FMUSP e participa no processo de formação acadêmica de alunos de graduação e médicos residentes no Hospital das Clínicas. Também atua na difusão de informações dentro da temática de HIV e ISTs no Brasil, desenvolvendo atividades com ONGs, portais de comunicação, agências de notícias, seminários de educação comunitária e onde mais existir alguém que tenha vida sexual ativa e possua interesse em discutir, sem paranoias, como torná-la mais saudável.

Sobre o blog

Com uma abordagem moderna e isenta de moralismo sobre HIV e ISTs, dois assuntos que tradicionalmente são soterrados por tabus e preconceitos, Rico Vasconcelos pretende discutir aqui, de maneira leve e acessível, o que há de mais atual e embasado cientificamente circulando pelo mundo. Afinal, saber o que realmente importa sobre esse tema é o que torna uma pessoa capaz de gerenciar sua própria vulnerabilidade ao longo da vida sexual. Podendo assim encontrar as melhores maneiras para manter qualidade no sexo, e minimizar os prejuízos físicos e psicológicos associados ao HIV e ISTs.