Afinal, o uso da PrEP causa ou não o aumento de outras ISTs?
Mesmo sendo uma das mais potentes ferramentas disponíveis para prevenção do HIV e fundamental para que enfim cheguemos ao esperado controle dessa epidemia, a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ainda causa reações negativas na população e entre profissionais da saúde.
Os argumentos usados para convencer de que a PrEP não é uma boa ideia são sempre os mesmos, passando pela eventual desinibição do sexo sem camisinha ou pelos raros efeitos colaterais do medicamento. Mas diariamente aparece alguém anti-PrEP nas redes sociais falando das outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), que, segundo eles, poderiam explodir com o seu uso.
Mas será que a PrEP realmente faz com que a incidência das outras ISTs aumente? Ou mesmo, será que estar em PrEP pode ser considerado como um desleixo no cuidado das outras ISTs? A resposta para essas perguntas é mais complexa do que parece, mas vou tentar explicar aqui.
A preocupação com as epidemias de sífilis, gonorreia e clamídia é absolutamente justificada, mas alguns pontos precisam ser bem compreendidos para essa análise. O primeiro deles é que os casos dessas infecções já estavam crescendo há décadas, mostrando que a camisinha sozinha não é capaz de contê-las. O segundo é que essas bactérias são muito mais transmissíveis que o HIV, sendo o sexo oral uma das principais vias de transmissão. E além disso, até 80% dessas infecções podem ocorrer sem que haja nenhum sintoma, e mesmo assim podendo ser transmitidas adiante.
Com essas informações, é fácil então entender por que, mesmo sendo todas elas infecções tratáveis e curáveis, ainda estamos longe de parar a disseminação dessas três bactérias pelo mundo. E a PrEP não é a causa disso, e sim a possível solução.
A PrEP é uma estratégia adicional de prevenção indicada para pessoas que vivem uma vida sexual em que são vulneráveis à infecção por HIV, como por exemplo com o uso inconsistente do preservativo. Ela inclui não só o uso do antirretroviral preventivo, mas também um acompanhamento médico com rastreamento periódico das outras ISTs, inclusive em indivíduos assintomáticos, o que possibilita o diagnóstico e o tratamento precoce desses agentes, quebrando dessa forma a cadeia de transmissão deles para outras pessoas.
Desde o princípio do estudo da PrEP, temos a preocupação com o que poderia acontecer com as outras ISTs após a sua implementação. Os primeiros trabalhos mostraram que não havia mudança nessas taxas, mas, depois, novos estudos passaram a encontrar resultados conflitantes, não sendo possível chegar a uma conclusão. Por fim, entendemos que nunca responderíamos a essa questão sem levar em conta uma variável muito importante: a mudança na frequência de testagem para essas ISTs entre os usuários de PrEP.
De fato, poucas pessoas fazem exames para ISTs de forma tão frequente quanto à proposta no seguimento de PrEP. Assim, um maior número de casos registrados de sífilis, por exemplo, poderia não significar que essas pessoas estavam se infectando mais, e sim que a nova rotina de testagem estaria diagnosticando mais casos assintomáticos de sífilis. E se fosse essa a situação, seria ótimo pois assim teríamos a oportunidade de trata-los.
Somente agora em 2019 foi publicado o primeiro artigo científico que analisou de maneira detalhada a incidência de ISTs entre usuários de PrEP, levando em conta a mudança na frequência de testagem. O Projeto Demonstrativo PrEPX, desenvolvido na Austrália, acompanhou quase 3.000 homens gays e bissexuais desde antes do início da PrEP e depois disso por cerca de 1 ano, e encontrou resultados muito interessantes.
Comparando os períodos pré e pós PrEP, a conclusão do estudo é que o único aumento encontrado nas ISTs foi o de apenas 1,1 vez nos casos de clamídia. A incidência de sífilis e gonorreia permaneceu igual durante o seguimento.
Além disso, 75% dos casos das três ISTs ocorreram em apenas 25% dos participantes, demonstrando que os usuários de PrEP não são todos iguais, e que um pequeno grupo com enorme vulnerabilidade sexual foi incluído no estudo. Um grupo que, se não fosse pela PrEP, poderia já ter se infectado com o HIV.
Existe ainda publicado outro trabalho com uma modelagem matemática que mostra que, conforme mais pessoas em uma comunidade iniciam a PrEP e entram na rotina de testagem e tratamento de ISTs, mesmo que ocorra redução na frequência do uso do preservativo, em 10 anos é esperada uma queda de mais de 40% nos casos de gonorreia e clamídia em toda a comunidade.
A conclusão disso tudo é que não faz nenhum sentido usar as outras ISTs como argumento contra a PrEP, pois, com a rotina da PrEP, temos em prática o melhor plano já criado até hoje para o controle da sífilis, gonorreia e clamídia. Principalmente quando conseguimos chegar aos indivíduos de mais alta vulnerabilidade para essas infecções.
Apoiar e divulgar a PrEP, suas rotinas e indicações, é um jeito de ajudar a controlar também as outras ISTs. Lutar contra a PrEP e insistir no uso isolado da camisinha é uma atitude burra e só atrapalha nesse controle.
A recomendação então é de usar a camisinha o máximo que conseguir, mas sabendo que, se não está sendo em 100% das suas relações sexuais, principalmente nas casuais, você pode se beneficiar do uso da PrEP.
E se para reduzir em todo mundo os quase 2 milhões de novos casos de HIV e 1 milhão de mortes por Aids anuais, o preço for tratar algumas infecções por clamídia a mais, considero que vale muito a pena.
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